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24 outubro 2008

A desafiar o frio na venda de castanhas há mais de 60 anos

"Adelaidinha" já não tem força para empurrar o carro. Tem de pagar a quem o faça
00h30m CARINA FONSECA, BRUNO T. PIRES


Aos 84 anos, Adelaide Santos ainda aguenta muitas horas em pé, ao frio, a vender castanhas. É assim há mais de 60 anos. Diz que este pode ser o último Inverno ali, de fuligem colada ao rosto.
Alguns clientes chamam-lhe "velhota", ternamente. Brincam com ela - "Tenho muitas pessoas amigas, fregueses que gostam de mim e me compram castanhas, sabe?" - e ela esquece as dores nos ossos e na carne para responder à letra. Os anos não lhe roubaram o humor. "Nem no meu casamento tirei tantas fotografias!", atira ao fotojornalista. Está uma tarde de vento forte e Adelaide protege-se com o xaile rôxo. O fumo do assador enegrece-lhe a face.
Quem pára na Praça 8 de Maio, o coração da Baixa de Coimbra, para lhe comprar castanhas, diz que são as melhores. "As desta senhora são sempre boas e quentinhas, não há uma podre. Quando tenho uns trocos no bolso compro", diz, de fugida, uma jovem.
A vendedora é generosa e atenta. Em cada cartuxo põe uma castanha "de brinde". E nem pensar em servir as castanhas esfriadas. "Teimosa!", reclama outra cliente. "Adelaidinha, elas estão boas, bem assadas, não é preciso aquecer!". Não adianta.
A preocupação com a qualidade do serviço prestado começa muito antes da venda. Levanta-se de madrugada para retalhar as castanhas e "tirar o podre", explica Adelaide.
Mas o corpo começa a ressentir-se da dureza do trabalho. A trombose e o derrame cerebral sofridos também pesam. "Passo muitas horas em pé. De vez em quando sento-me, mas tenho de assar as castanhas e de tomar conta dos clientes. É vida de pobre", solta, resignada. Incapaz de cumprir todas as tarefas, tem de pagar para lhe empurrarem o carrinho e lhe levarem as castanhas a casa. O facto de viver na Rua Corpo de Deus, a dois passos dali, mas bastante inclinada, é uma agravante. "Quando eu era nova, as coisas levavam-se bem, era eu que fazia tudo".
Maria Alice Pereira ajuda-a a manter-se na actividade, acrescentando uns euros à reforma exígua. "Chegamos a um ponto em que ficamos como família. O carrinho é um bocado pesado e a ladeira é custosa de subir", diz a vizinha. Adelaide vende uns 10 quilogramas de castanhas por dia. Sempre é melhor que nada, como sublinha. Até porque o valor da reforma não cobre sequer a conta na farmácia.
Não tem pregões porque não gosta de chamar ninguém. "As pessoas vêm. Os meus fregueses já sabem como sou. Muitos conheceram-me nova". Os turistas também se lhe dirigem, de máquinas fotográficas estendidas. "Tenho retratos por todo o lado: Espanha, Brasil..." Ainda assim, Adelaide sente que este pode ser o seu último Inverno enquanto vendedora de castanhas. "Isto deve ser o fim. Já apanhei muito frio e muita chuva, levei muitos carregos. Agora não posso". Sabe que a profissão está a esfumar-se e não desperta interesse nos novos.
Para trás, ficam décadas de trabalho e alguns dissabores, como os dois carrinhos perdidos. Um foi levado da sua porta, outro incendiado. "Estava a arder, às sete e meia da manhã", recorda a vizinha. "Este é o terceiro e também já esteve para marchar", diz a vendedora de castanhas. Crê que os ladrões terão sido interrompidos por alguém. "Fazem isto por maldade, menina. Não é por bem que queiram à gente".


in: Jornal de Notícias de 24/10/2008

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