Automutilação cresce entre os mais jovens
00h30m
HELENA NORte
Criar proximidade e falar abertamente do assunto são estratégias para detectar sinais de perigo e prevenir suicídios e automutilações.
A depressão é a principal causa de suicídio em todas as idades, incluindo os jovens", afirma Daniel Sampaio, autor de extensa bibliografia sobre a matéria e investigador do Núcleo de Estudos do Suicídio do Hospital de Santa Maria, Lisboa. "Há um continuum de sofrimento, de desesperança. Não é por ter uma negativa ou perder a namorada que um jovem se mata. Os suicídios repentinos são excepcionais", sublinha.
Há uma história de tristeza intensa e prolongada, alterações no sono e no apetite, falta de esperança na vida e nos outros, culpa, desespero e, frequentemente, ideação suicida claramente verbalizada. "Entre os que se suicidaram, 70% avisaram que o iam fazer", alerta o psiquiatra, que enfatiza a necessidade de valorizar sempre essas mensagens. Valorizar não significa culpar ou repreender, mas, antes, "criar proximidade". Ou seja, gerar oportunidades para se falar do assunto, sem mitos ou tabus, e estar presente, o mais possível. Pedir ajuda especializada é também aconselhável quando os sintomas se avolumam.
Os sinais de depressão nem sempre são descodificados pelos pais, professores e amigos. São confundidos com a instabilidade emocional característica da adolescência. Daniel Sampaio explica que o comportamento normal distingue-se do patológico pela intensidade e persistência com que se apresenta. "Se um jovem tira uma negativa, não é significativo, mas se tirar quatro ou cinco pode ser. Se de vez em quando, gosta de estar sozinho no quarto é normal, mas se o isolamento social é persistente, pode ser problemático. Gritar numa discussão não é relevante, mas se o jovem grita todos os dias e recusa frequentemente o convívio familiar, pode ser motivo de alarme."
Num contexto de sofrimento e de desesperança quanto ao futuro, perdas, humilhações, rejeições ou fracassos podem ser a gota de água que transborda o copo do desespero e espoletar o suicídio.
Um estudo realizado em 1999, com 800 adolescentes de vários pontos do país, concluiu que um terço dos jovens apresentava ideação suicida. A passagem do pensamento ao acto depende, porém, de vários factores, sendo o suporte familiar e dos amigos um dos mais importantes, sublinha Maria Gouveia Pereira, autora de vários estudos sobre o suicídio na adolescência e professora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada/Instituto Universitário.
Conspiração do silêncio
O problema é que apoiar pressupõe valorizar os sinais e ser capaz de falar sobre o assunto. "É mais fácil negar, desvalorizar ou silenciar. Calámos o que nos incomoda", considera a psicóloga. Uma acentuada descida no desempenho escolar é o sintoma mais valorizado pelos pais, mas há outros, igualmente preocupantes, como o isolamento social. "Um jovem que não sai à noite, não arranja problemas, não bebe e não fuma, não suscita preocupações aos pais, mas a falta de amigos, de convívio com pares, pode ser indiciador de que algo não está bem", enfatiza a psicóloga.
A conspiração do silêncio alimenta a ignorância. Duas investigações realizadas em Portugal demonstraram que adolescentes e os professores não sabem reconhecer os sintomas de perigo e, consequentemente, são inaptos para ajudar, sublinha Maria Gouveia Pereira.
Os números oficiais referem uma diminuição da taxa de suicídios em Portugal. Contudo, trata-se de um assunto incómodo. Até para as estatísticas. Em caso de dúvida, é preferível classificar a morte de um jovem como acidental ou devido a causas indeterminadas, mesmo que as circunstâncias - como a queda de um prédio alto ou na via férrea - sejam suspeitas. A realização sistemática de autópsias psicológicas ajudaria a clarificar muitas situações.
Automutilação para aliviar sofrimento
Os suicídios podem estar a diminuir, mas há indicadores de risco que estão a aumentar. É o que acontece com os para-suicídios: auto-agressões, como cortes e queimaduras, infligidas para aliviar sofrimento psicológico através da dor física, mais controlável e, por isso, mais tolerável. "Não há estudos rigorosos sobre os para-suicídios, mas calcula-se que por cada caso que chega às unidades de saúde, haja três que não são conhecidos", de acordo com Carlos Braz Saraiva, psiquiatra que há longos anos estuda a suicidologia e responsável pela criação da Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).
O único estudo epidemiológico, realizado em Coimbra em 1996, deu conta de uma realidade inquietante (600 casos por cem mil habitantes e por ano), principalmente entre as raparigas dos 15 aos 24 anos. No fim da década passada, uma actualização desses números apontava para um aumento de 25%. O empirismo clínico colabora essa tendência. "Todos os dias, dão entrada na Urgência dos HUC dois ou três casos de para-suicídio, de todas as faixas etárias", refere Braz Saraiva.
Música e suicídio
Outra investigação, realizada no âmbito de uma tese de doutoramento sobre música, morte e suicídio, apurou que 35% dos jovens inquiridos assume ter tido comportamentos de auto-mutilação. Abílio Oliveira, psicólogo social e docente do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, estudou 1300 jovens dos 15 aos 19 anos e concluiu que há uma associação entre o gosto por música dita pesada e comportamentos de risco e ideação suicida. Contudo, "não se pode falar de relação de causalidade", enfatiza o autor de Ilusão na idade das emoções, acrescentando que ninguém resolve matar-se por ouvir determinada música ou ler certo escritor.
"Os gostos musicais são um bom indicador dos sentimentos do adolescente, desde que enquadrados no modo como encara a vida e representa a morte, o suicídio e a si próprio" , sublinha Abílio Oliveira. E acrescenta: "Os adolescentes dizem que querem morrer, acabar com tudo, mas na realidade querem é desaparecer daquela vida. Ao tentar a morte, esperam sobreviver e renascer para um sentido para a vida. A morte não é o fim. É um fim".
(in Jornal de Notícias de 31 de Janeiro de 2010)